Shibari
Araki Nobuyoshi, “Marvelous Tales of Black Ink,” 2007.

Shibari- corpo, alma e erotismo

Este texto é uma versão simplificado do meu trabalho final para a disciplina de Gênero e Sexualidade cursada em 2018.

Rafaela
10 min readMay 18, 2020

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O campo de Gênero e Sexualidade e o fetichismo

Gênero e Sexualidade em realidade são campos diferentes de estudos, mas com o avanço das pesquisas, percebe-se que é difícil discutir um sem o outro. Neste texto, meu foco será a sexualidade, mas como tudo se conecta em algum grau, não será deixado de mencionar algumas coisas sobre gênero.

Com o trabalho da historiadora Joan Scott entendemos que gênero ajuda entender como corpos sexuados são produzidos (Scott, 1990). Compreender como a ideia de “homem” e “mulher” se construíram. Além disso, podemos entender como essas categorias são quando estão em relação(Scott, 1990). Dessa maneira, entendendo o que é gênero podemos também compreender como a sexualidade se dá, por isso gênero e sexualidade estão intimamente conectados.

Com Donna Haraway, em “Saberes Localizados”, podemos ver o quanto a ciência possui um viés muito específico de gênero e de raça (Haraway, 1995). O que é tratado como neutro e universal na realidade é branco e ocidental (Haraway, 1995). Portanto é importante entender como um conhecimento foi produzido.

Um exemplo disso é como mulheres e a sexualidade não padrão são apresentadas no discurso científico. Por um lado ser mulher é diminuído, como algo naturalmente fraco, e a sexualidade não padrão é tratado como doença (práticas fetichistas são tratadas como parafilias até hoje). Assim é preciso de outros olhares e contextualizar a pesquisa.

Passando para o campo da sexualidade, seu estudo é mais antigo. Sexo e sexualidade fazem parte de diversas discussões, em geral, num contexto que colocava o sexo como um tabu e transformado em doenças práticas não padronizadas de sexo e sexualidade. Dentre os trabalhos do século XX, destaco os de Michel Foucault, que é grande referência para os trabalhos posteriores de gênero e sexualidade.

Foucault era um filósofo francês e dedicou boa parte dos seus trabalhos para entender a questão do “Poder”. O poder para ele se apresenta de maneira relacional, ou seja, a partir do momento que lida com alguém uma relação de poder se estabelece (Foucault, 1997). A partir disso, Foucault passou a pensar sobre o sexo como parte da esfera de poder, algo que vemos nos três volumes de “História da Sexualidade”.

Mas estudar sexo, muitas vezes, é colocado como um campo desnecessário em meio a tantas outras questões. Porém, em seu texto “Pensando Sexo”, Gayle Rubin mostra que em cenários de crise há o que ela chama de “pânico moral” (Rubin,2018). Esse pânico faz com que toda e qualquer prática sexual não padrão seja punida. Punição não só no sentido social, mas também legal. Inventam vítimas, em geral crianças, para justificar a condenação de tudo que não é a norma (Rubin, 2018).

Assim, o sexo é político, como qualquer esfera da sociedade, é um campo de disputas e de negociações (Rubin, 2018). E o grupo que destaco é o grupo fetichista.

A relevância de pensar em práticas fetichistas é o fato de terem sido classificadas como patologia pelo psiquiatra Richard von Krafft-Ebing. No século XIX, Krafft-Ebing publicou o livro “ Psychopathia Sexualis ”, em que ele coloca práticas sexuais não padrão na chave da patologia (Gregori, 2016). Portanto, essas práticas precisavam de tratamento médico.

Mesmo essas práticas serem antigas, só nos anos 1970–1980 passaram a agir como uma espécie de comunidade, assim se deu início a ideia de comunidades fetichistas. Tendo como referencial os EUA, existiram dois grupos que deram origem a essas comunidades e que lutaram contra a moralização do sexo. São o Samois e o Leather Culture (Gregori, 2016).

O grupo Samois era composto por mulheres lésbicas feministas que tinham práticas sadomasoquistas, grupo no qual a própria Gayle Rubin fazia parte. O grupo Leather era de homens gays, fetichistas que tinham como marco o uso de roupas de couro.

Esses grupos contribuíram para a defesa de uma sexualidade alternativa e para a despatologização dos fetiches (Rubin, 2018). E essa é uma das bases para o que hoje chamamos de BDSM.

O BDSM é o acrônimo para Bondage, Dominação/disciplina, Sadismo/submissão e Masoquismo. Com os trabalhos de Regina Facchini e Maria Filomena Gregori podemos compreender como é o cenário fetichista no Brasil.

O livro “Prazeres Perigosos” da antropóloga Maria Filomena Gregori nos ajuda a entender a dinâmica do BDSM e como se dão os elementos de violência. Além de demonstrar uma nova ideia de sexo e de outras possibilidades de viver a sexualidade. Destaco a cena na qual ela descreve uma performance em um evento fetichista. A cena é um casal em que a mulher está amarrada e sendo chicoteada pelo seu parceiro. A expressão de prazer no rosto da mulher e de seu parceiro é evidente, a experiência é sexualmente intensa, mesmo que não exista o coito (Gregori, 2016).

Dentre os diversos trabalhos da Facchini, destaco o artigo que ela escreveu com Sarah Rossetti, com o título de “Praticamos SM e repudiamos agressão”. O trabalho mostra como BDSM veio para o Brasil e se instituiu como comunidade. Por se tratar de uma prática que envolve violência, a necessidade de criar esquemas de segurança são de extrema importância, assim o ensino adequado das práticas, com workshops e locais seguros surgem.

A importância de entender o BDSM ajuda na discussão sobre consensualidade. Entender que é consensual ajuda a entender o que é abuso. O BDSM tem limites e a primeira regra é do SSC (são, seguro e consensual), mas hoje há diversos esquemas de segurança para garantir a prática saudável.

Informação exclusiva para o Medium: Algo que é difícil encontrar nos textos sobre o BDSM no Brasil é como ele veio parar aqui. As histórias podem ser diversas, mas conversando com uma amiga que já é mais antiga na comunidade, a entrada do BDSM no Brasil se deu lá pelos anos 1980–1990, trazida por uma mulher dominadora que sentia a necessidade de espaços seguros para a prática e troca de informação. Trago essa informação para contrapor muitos argumentos que falam da violência dessa prática ser fruto do “patriarcado” e que coloca a mulher automaticamente como submissa. Não é assim que a banda toca e fazer comentários sem ter conhecimento da comunidade é ruim. O BDSM tem sim diversos problemas, mas a questão de gênero não é diferente e nem pior do que vemos na sociedade como um todo.

O BDSM e sua transformação

BDSM tem sofrido algumas transformações desde que essas pesquisas foram feitas. Venho acompanhando a cena desde 2016 e percebo que a ideia de comunidade está se perdendo. Assim como alguns elementos da dinâmica de Dominação/submissão estão cada vez menos rígidos.

Com a popularidade da prática as pessoas se apropriam de alguns fetiches que lhes interessa e o transformam dentro da própria dinâmica. Em geral, as pessoas estão preferindo o termo “fetichista” ao invés de usar um “título”, mesmo estando no papel de dominação ou de submissão.

Observando o que tem se popularizado, percebi que o Shibari tem sido a prática mais procurada. O Shibari é uma técnica de nó erótico japonesa. Vendo o aumento do número de pessoas que procuram a prática, o número de contas no Instagram e o senso de comunidade que antes pertencia ao BDSM, agora está centrado em um prática apenas, o Shibari.

Shibari e suas possibilidades

O Shibari faz parte de práticas que envolve restrição de movimento. É uma técnica japonesa que tem como origem o Hojojutsu, uma técnica militar para prender criminosos (Master K, 2013–2015). A temporalidade no Japão não é muito precisa, mas desde o Período Edo (1603–1868) há registros de tortura através da corda (Master K, 2013–2015).

A prática possui diversos nomes: Kinbaku, Shibari, bondage japonês, bondage com cordas, dentre outros. Mas como no Brasil a prática se popularizou como Shibari, então utilizarei esse nome.

Por mais que o Shibari entre como uma prática do BDSM, há uma defesa de retirá-lo desse guarda-chuva. Mesmo tendo alguns elementos de Dominação/submissão, essa dinâmica acontece de maneira diferente do que a gente entende como poder no Ocidente. É difícil que o Shibari se separe de fato do BDSM, pois ambos se conectam de alguma maneira.

Grande parte da popularidade se deu através do Instagram. O Shibari é uma prática que tem muito apelo estético. Por ser muito performático, ele consegue sair da esfera da vida privada para a pública pois pode se apresentar como forma de arte. Uma grande referência é o fotógrafo Araki Nobuyoshi.

Tal popularidade contribuiu para o aumento de pessoas que entendem a técnica e os espaços que permitem o aprendizado. O bar Dominatrix de São Paulo oferece workshops e os próprios shibaristas oferecem aulas particulares. Entretanto, o Shibari é uma prática complexa que demanda muito conhecimento e prática.

O meu interesse pelo Shibari se deu por diversos motivos. Essa prática me permitiria continuar a estudar as diversas possibilidades que existem dentro do BDSM e ainda me possibilitaria lidar com algo que tem particularidades da cultura japonesa. Diferente do bondage ocidental, o Shibari tem uma história específica (Master K, 2013–2015). Além disso há um cuidado estético e de técnica que obriga o shibarista uma certa dedicação ao estudo.

As questões que tive eram a possibilidade de acessar a cultura japonesa através do estudo das origens da prática e que se o fato das imagens trazerem mulheres japonesas amarradas poderia contribuir para a fetichização delas no Ocidente. Ao ler alguns textos e conversando com alguns praticantes me deparei com situações interessantes.

Meu primeiro questionamento se mostrou coerente. O fato de ser uma prática que demanda estudos faz com que a pessoa tenha que entender as particularidades do Shibari, seja sua história, seja seu significado em relação à cultura japonesa. Por ter uma origem militar, cada figura tem uma significado. Outro ponto importante é a relação que se tem com o corpo, algo que me fez distanciar do segundo questionamento.

Tendo contato com o feminismo asiático, percebemos que mulheres amarelas sofrem grande fetichização por parte de pessoas brancas. Essa fetichização se intensifica com mídias como a pornografia. Dessa maneira, como o Shibari é visual, ou seja, há muito contato com fotos, pensei que a constante exposição poderia ser outro meio de fetichização. Mas esse pensamento não se sustentou.

O que de fato me chamou atenção é a relação com o corpo e uma espécie de espiritualidade. Conversando com um praticante, ele me recomendou um livro que se chama “Leituras do corpo no Japão e suas diásporas cognitivas”, da Christine Greiner. Greiner tem formação artística e suas pesquisas são voltadas para as práticas de teatro e dança no Japão, pensando em como se dá a corporalidade através da arte. Nesse livro ela discute como as concepções e entendimento do corpo mudam ao longo da história japonesa.

Destaco o momento que ela analisa o teatro. Para se atingir uma excelência na atuação é preciso um grande treinamento do corpo e da mente (Greiner, 2017). Vale notar que mente e corpo não são partes separadas, mas sim intimamente ligados. É de grande importância que a mente esteja limpa para que o corpo possa atingir o ápice de sua performance (Greiner, 2017), ou seja, o vazio da mente é fundamental. Ao ouvir os relatos percebi como esse vazio é presente e acontece de maneira quase inconsciente na prática do Shibari.

Toda a sessão tem um esquema ritualístico. A medida que os nós são feitos, quem está sendo amarrado é cada vez mais levado a um estado meditativo, um mergulho dentro de si e tudo ao seu redor some. O aftercare (cuidado pós sessão) é tão importante quanto a própria sessão. A pessoa está em um estado alterado que é chamado de ropespace e é preciso trazê-la de volta. Esse momento demanda muito cuidado e calma, pois é preciso esperar a pessoa voltar a si.

Vendo o tanto de emoções que essa prática provoca, mais do que outras que também possibilitam esse transe, essa torrente de emoções me pareceu mais interessante de se analisar do que a possibilidade de fetichização da mulher amarela. Pensar em como o Shibari possibilita uma forma de erotismo totalmente diferente, com todos os tipos de sentidos e sentimentos envolvidos me parece mais interessante. Por isso o Shibari é: corpo, alma e erotismo.

Alguns comentários após reler este trabalho

Quando tratei sobre esse elemento de fetichização da mulher amarela através do Shibari, acredito que eu deveria ter ido para outro lado. Não para os estereótipos que se colocam sobre mulheres amarelas, mas pela fetichização da própria cultura japonesa. Como o Shibari tem um apelo estético, a imagem e a beleza dela importam, nisso, vejo muitas pessoas brancas usando vestimentas japonesas de maneira inapropriada e desrespeitosa. Talvez a questão para se abordar não é tanto pela raça mas pela apropriação cultural.

Também vejo que, apesar da popularidade de pessoas que se oferecem para ensinar e explicam a necessidade da prática segura, há muita irresponsabilidade. Qualquer tipo de restrição de movimento tem que ser feita de maneira segura, a corda aperta veias e nervos e não pode ser feita de qualquer maneira e em qualquer parte do corpo. Mas mesmo assim você pode ver amarrações erradas, peles roxas e muitas outras coisas.

A sexualidade ser tratada como algo natural e não social faz com que muitos lidem de maneira irresponsável com práticas que envolvem cuidados físicos e emocionais.

Nunca se esqueçam: são, seguro e consensual.

Referência bibliográfica:

FACCHINI, Regina. “Praticamos SM, repudiamos agressão”: classificações, redes e organização comunitária em torno do BDSM no contexto brasileiro. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), 2013.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro:Graal, 1977.

GREGORI, Maria Filomena.“Prazeres perigoso”. São Paulo: Companhia das Letras,2016.

GREINER, Christine. “Leituras do corpo no Japão e suas diásporas cognitivas”. São Paulo: n-1 edições, 2017.

HARAWAY, Donna. “Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”. Cadernos Pagu, Campinas, (5), 1995.

Master K. “Kinbaku and Arte”, 2013–2015. Disponível em: <http://www.thebeautyofkinbaku.com/kinbakuandart1.html > Último acesso: 25 de novembrode 2018.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 16 n.2, jul/dez 1990.

RUBIN, Gayle. Pensando sobre o sexo: notas para uma teoria radical das políticas da sexualidade. In: RUBIN, Gayle. Gayle Rubin e políticas do sexo. São Paulo: UBU, 2018.

Para mais informações recomendo o perfil do Jon Das Cordas, pessoa que me ajudou a fazer este trabalho!

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Rafaela

Antropóloga e especialista em assuntos aleatórios! Uso letras minúsculas para me sentir mais livre. Newsletter: https://tinyletter.com/cafezinho_da_tarde