Olivia Coman em A Filha Perdida (Foto: Divulgação)

se elena ferrante fosse um homem?

Rafaela
4 min readFeb 22, 2023

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se tem um desafio que acho curioso nos tempos modernos é se manter incógnito e o lance de escrever através de um pseudônimo, sem revelar sua verdadeira identidade, parece um desafio que beira ao impossível.
e acho que soa impossível até para quem começou nisso antes da habilidade que a internet nos dá de descobrir quem são as pessoas.

elena ferrante, um mistério por trás de quem seria essa pessoa e confesso que um dos debates que acho mais curioso é levantar a hipótese dela ser um homem.
não sei se isso rolou em meios especialistas, mas uns anos atrás, em uma premiação de literatura, se não me engano, da Espanha e me dou ao luxo de trazer essa informação por cima mesmo, como uma boa fofoquinha, três caras ganharam um prêmio de melhor livro de ficção científica, novamente, se não me falha a memória.
eles escreviam sob o pseudônimo de um nome feminino e tal “escritora” era conhecida como a elena ferrante deles.
vendo isso, imagino que muita gente, principalmente quem é apaixonado pela autora, pensou nisso de que “vish e se elena ferrante no final é de fato um homem?”. até então havia uma suspeita de que no final ela seria um escritor italiano, mas ele já negou esses indícios.

assim, tudo é possível nesse mundo, incluindo a pessoa por trás da autora ser um homem, mas sendo sincerona, acho extremamente difícil.

então vamos contextualizar para você que não a conhece.
ela é uma escritora italiana, que nunca teve sua identidade revelada, na qual sua obra mais notória é a Tetralogia Napolitana, em que acompanhamos a relação e os conflitos da vida de duas amigas, desde a sua infância até a velhice. seus textos são sempre permeados por nápoles, por ser menina, adolescente, mulher, mãe, esposa, amante, profissional, sempre dentro de uma perspectiva feminina.

confesso que eu nunca tinha dado muita bola, tenho uma péssima mania de evitar coisas que exalam a energia de pira de gente branca TM, mas, no meio da pandemia pensei que daria uma chance.

logo nas primeiras páginas já fui capturada. a cena descreve o desaparecimento de qualquer vestígio da amiga, que se chama Raffaella, tudo que havia sobre sua existência tinha sumido, fotos, roupas, itens pessoais de qualquer espécie, tudo sumiu. enfim o ato final dessa amiga genial (geniosa).
se tu me conhece entende o quanto comprei a pira desses livros só com essa cena.

ENFIM

mas, lendo o livro você vai sentindo um nível de emoção que somente elena ferrante consegue proporcionar e numa intensidade que somente quem tem/teve vivência como mulher (cisgênera+hetero) consegue sentir.
por mais que eu não acredite em experiências universais, há elementos do “crescer sendo mulher” que permeia o ocidente que acaba sendo algo em comum.
crescer sendo a boa filha, ser uma adolescente desprovida de beleza, compensando com ser muito esforçada e inteligente, a experiência esquisita e nem sempre prazerosa da primeira transa, desamores, encantamento por homens narcisistas, o cara marxista chato para caralho que rouba sua ideias e é imaturo emocionalmente (é específico demais, mas se tu é uma mulher de esquerda já encontrou vários assim), descrença profissional, ausência de escolhas, enfim….
eu posso gastar tempo, tinta, letras e palavras para dizer como a elena ferrante descreve a experiência de ser mulher e mesmo assim não será suficiente para trazer o efeito que ela causa, é uma leitura muito incômoda mas ao mesmo tempo viciante que é de um local e toca em uma dor muito específica.

por essa especificidade universal, que apesar de contraditório faz sentido aqui, eu duvido muito que a dona elena no final seja um homem (cis hetero).
mesmo que ele faça uma baita pesquisa de campo, consiga entrevistar uma quantidade absurda de mulheres, que presencie inúmeras coisas que o ajude a ter ideias e bolar cenários, elena ferrante não é uma escritora que se resuma a isso, há muito sentimento que ela traz que apenas quem viveu consegue sentir o nível da coisa.

não tenho a mínimo noção de como é essa discussão dentro da critica literária e dos estudiosos de elena ferrante, mas tem coisas que não importa o quão bom é o escritor, ele não vai conseguir dar conta.
para mim, a figura do nino sarratore é a mais marcante, que é justamente o cara marxista chato, sensível, mas que é emocionalmente imaturo. você se encanta por essa criatura, mas que no final é mais alguém que não faz o que diz e que segue sendo uma figura problemática.
não acho que se encaixe tanto na figura do “esquerdomacho’, mas tá quase lá.

não acho que elena ferrante seja um homem, mas se for tiro o meu chapéu.

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Chegou até o final?

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Rafaela

Antropóloga e especialista em assuntos aleatórios! Uso letras minúsculas para me sentir mais livre. Newsletter: https://tinyletter.com/cafezinho_da_tarde