Maria Callas em foto de Cecil Beaton (reprodução)

Se até Cleópatra era insegura…

Rafaela
10 min readJun 20, 2022

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… quem sou eu para não ser, não é mesmo?

eu, como boa fofoqueira, gosto de saber da vida dos outros, principalmente de gente famosa! E mais principalmente ainda, para saber como era essa pessoa na vida privada, sua personalidade e suas inseguranças. talvez seja para procurar um certo conforto, se mulheres tão incríveis e grandiosas tinham suas fraquezas, então eu posso ter as minhas.

no começo do ano passado eu li a biografia da Catarina, a Grande, basicamente uma das poucas monarcas russas que conseguiu o título de “a Grande”, ainda em vida. Fato curioso, ela não era russa, mas sim filha de um nobre aleatório alemão, o que rolou, foi que a czarina Isabel, filha do Pedro, o Grande, não estava conseguindo produzir um herdeiro e ela tinha receio que o trono saísse de sua família. então, ela juntou o seu sobrinho com alguma garotinha da família do seu falecido marido.
assim, Catarina, na realidade seu nome era Sofia e mudou pois ela se converteu para a igreja ortodoxa russa, foi parar naquele país no qual ela não conhecia o idioma e era vista com maus olhos, pois os russos não gostavam dos alemães.
ela foi criança e basicamente teve toda sua educação moldada para ser a rainha da Rússia no futuro. tudo parecia ir conforme o plano de Isabel, a menina era obediente, estudiosa e se esforçava para ser querida por todos, tanto pelo seu futuro marido, quanto pelo povo russo.
tudo estava indo bem, até que chega a adolescência e o momento do casamento. o seu marido era um garotinho mimado e extremamente inseguro, ela tentou ajudar ele, mas, por causa das feridas causadas pela varíola, ela começou a ter uma certa repulsa pela sua aparência, por mais que tentasse disfarçar, o que fez com que o amigo-marido acabasse descontando toda sua frustração e nojo sobre si mesmo em cima da Catarina.
o casamento não funcionou, tanto que ela aplicou o golpe em seu marido e, boatos, de que nenhum filho que ela teve era dele. engraçado pensar que boa parte da monarquia europeia, que veio da Catarina, na real são todos descendentes de filhos bastardos. Mas, né, DNA não existia, então segue o baile.

e, apesar dela ter sido uma das regentes mais relevantes da Europa, apesar de todo o poder que ela tinha, ela ainda era muito insegura quando se falava sobre afetos. consequência de não ter o amor dos pais, que só queriam usar ela para ascensão social, o marido que nunca deu bola para ela e todos os seus amantes que queriam mais era controlá-la.
ela queria afeto, mas raramente o conseguia, pois era difícil confiar nas pessoas e era difícil confiar nela mesma.

agora, resolvi ler a biografia de uma das mulheres mais míticas e lendárias da história: Cleópatra VII.
é bastante curioso como a imagem dela foi se moldando ao longo dos séculos e conforme as pessoas que faziam os relatos. restou poucos objetos do reinado dela, então qualquer coisa fica muito mais em cima das possibilidades, do que um relato próximo da realidade.
uma das coisas que sempre me chamou a atenção foi com relação a aparência dela. temos as moedas de sua época, umas que ela mesma mandou fazer, outras feita por reinados vizinhos, umas mais lisonjeira com sua aparência, outras nem tanto, mas o que há em comum em todas elas é que nenhuma a sua figura é realmente bonita.
acho que ficamos viciados na imagem de uma Cleópatra branca de olho claro, somado com toda mítica sobre o seu poder de sedução, a gente imagina que todo esse poder está em sua beleza.
mas não é bem assim…
é quase unânime nos relatos de que ela não era bonita nem feia, tinha os traços macedônios comuns, uma pele mais bronzeada e é isso.
nariz grande, queixo proeminente, nada particularmente belo.
e assim como qualquer garotinha de beleza mediana, ou nenhuma beleza, ela se empenhou nos estudos. falava diversos idiomas, manjava de história, astronomia, oratória e o que mais você imaginar.
ela não era bonita, mas era muito encantadora, sem contar a habilidade para fazer festar!

~ enfim ~

ela também é famosa por ter conquistado dois grandes romanos, o Júlio Cesar e o Marco Antônio, ficou até um certo questionamento de como isto aconteceu, afinal, ela não era tão bonita assim…
é muito difícil afirmar o como, ou até mesmo se conquistou, pois no final das contas, tinha muitas questões políticas em jogo, ter o Egito do lado era questão de sobrevivência.
mas, não dá para negar que ela obteve um relacionamento com ambos.
contudo, ambos eram casados… com Cesar, ela não tinha tantas questões, mas com Marco Antônio, a história foi outra.

ele foi casado diversas vezes, amava sim as esposas, mas como bom rei da p0t4ria, ele gostava de colecionar rainhas, Cleópatra era uma dela, porém, era a favorita dele.
certa vez, em uma viagem com fins político, a esposa de Marco Antônio resolveu aparecer… e sim, Cleópatra estava com ele…
o problema é que, a esposa dele era conhecida como um das mais belas figuras de Roma, tanto que seu busto realmente retrata uma mulher belíssima.
Cleópatra sabia disso, sabia que ele amava sua esposa e sabia também que sua beleza não era lá aquelas coisas.
Tomada por um sentimento de insegurança, ela fez de tudo para prender a atenção de Marco Antônio e não o deixar ser influenciado pela esposa, que também tentava uns jogos políticos nas horas vagas.

outro figura que também sempre me chamou a atenção é Maria Callas. mulher belíssima, com uma voz rara, ela foi muito famosa na sua época por, além da voz única, conseguir popularizar, na medida do possível, a ópera, que, ao meu ver, é uma arte um tanto quanto elitista.
recentemente vi um documentário sobre ela, no qual, além de explicar um pouco sobre a vida dela, tinha diversas entrevistas.
o seu sonho era casar e ter filhos, uma família só para ela, algo que ela largaria sua carreira para viver exclusivamente uma vida doméstica, mas, como ela mesma disse, possivelmente esse não era o seu destino, então, ela seguia cantando.

talvez essa figura seja desconhecida para você, ou ao menos sua vida privada, mas, a vida amorosa dela era bastante conturbada. teve um casamento infeliz por anos, vários relacionamentos caóticos, incluindo com Aristóteles Onassis, com o qual, apesar do grande amor que ela tinha por ele, viviam brigando, até que ele a largou para ficar com Jackie B. Kennedy (sim ela mesma que você está pensando).

Não vou nem mencionar sobre a vida afetiva de Marilyn Monroe…

lendo e vendo relatos sobre estas mulheres e também vendo diversas figuras femininas que eu admiro, todas têm algo em comum, em geral são um fracasso na afetividade romântica.
não se pode ter tudo, mas o que eu sinto é que o quanto nós, mulheres, invalidamos diversas conquistas nossas se no final não temos um relacionamento. tu pode ser a CEO da empresa mais f0dástica do mundo, mas se não é casada, não vale nada.
sei que isso parece um pensamento que a gente tinha superado, mas não superamos e eu não quero deixar esse tipo de debate morrer, porque é urgente a gente ter discussões melhores sobre afetividade, dentro das mais variadas perspectivas.

espero que as próximas gerações sejam diferentes, mas ao menos na minha, a gente cresceu com a heterossexualidade e cisgeneridade compulsória, dentro disso, com a ideia de que as mulheres PRECISAM ter um relacionamento e são responsável pela manutenção afetiva dele, enquanto homens ainda se enxergam como o papel de provedor, sem se achar responsável por qualquer questão emocional do casal.

a gente, mulher, cresce entendendo que a atenção que vale a pena é sempre a de um homem, normalmente um homem branco.
a gente cresce com esse peso de que é esse tipo de validade que precisamos procurar, como se todo o nosso caráter fosse moldado em como os homens nos tratam. tipo aquela máxima mulher para casar vs mulher para f0der.
você quer ser a do primeiro grupo.

MAS eis que surge o feminismo, com toda sua proposta de libertação dos grilhões da sociedade. e até que funciona em uma certa medida, mas só se você for uma mulher hetero cis branca.
tudo que este movimento pauta é conforme as vivências de mulher desse grupo em específico e muitas coisas que são relevantes, não para elas, ficam de fora.
parte relevante das falas do movimento feminista hegemônico é pautado sobre não se validar em cima de homens, não dar atenção para homens e coisas do tipo.
elas falam isso sabendo que, mesmo assim, a afetividade romântica não lhes será negada, então, falar desse tipo de afetividade, acaba sendo um assunto banal.
fala-se do afeto entre mulheres (lembre-se que estou falando de um contexto hetero-cis), sobre sororidade, mas o afeto romântico não está em pauta.

e eu acreditei nisso, acreditei mesmo, tanto que sempre fui muito fechada para esse tipo de coisa, sentindo-me até superior, como se esse afeto fosse algo irrelevante para minha vivência.
mas uma coisa é este sentimento na teoria, outra coisa é na prática.
eu acredito que, para que você consiga não se validar em cima de alguém, você precisa de uma certa segurança sobre si e uma certa autoestima.
crianças racializadas não tem esse tipo de apoio, então, quando adulto, fica um pouco difícil criar toda essa autoconfiança do nada.

e fico pensando no quanto toda essa mentalidade torta nos prejudica quando falamos de afeto. nos afeta de não se permitir o afeto, de não achar que merece afeto, de aceitar pouco, de gerar desconfiança, ou seja, nunca vivenciar uma experiência minimamente normal de afeto.
eu não sou lá solidária com Freud, mas esses dias vi uma pessoa citando uma frase dele que era basicamente que não é amando a si mesmo primeiro, que você conseguirá amar o outro, mas é ter sido amado que te fará amar o outro, basicamente só quando você vivencia situações de afeto, que você entenderá o amor e conseguirá amar.

mas para também se permitir ser amado te joga numa situação de vulnerabilidade que não é qualquer pessoa que se pode se dar esse luxo.

eu realmente não dava bola para esse assunto até pouco tempo, tanto que hoje é uma das coisas que me deixa mais bolada e reflexiva.
este debate não está dentro do feminismo hegemônico, tanto que só fui me ligar disso ao me depara com questões raciais e falas de pessoas como bell hooks e Patricia Hill Colins, ambas feministas pretas.
e por que elas pensavam sobre isso? porque sendo de um grupo racializado você percebe todos os elementos que te desumanizam, a falta de afeto é um deles.

e por essas e outras que, por mais que você seja uma pessoa incrível e bem sucedidas em muitas coisas, quando você não tem um relacionamento, parece que ainda falta alguma coisa…
e ainda falta porque a gente tem encucado de que você precisa ter um relacionamento, ainda mais se você for uma mulher, ainda mais ainda se você for racializada.

uma discussão um tanto quanto comum no twitter, ainda que não tanto polêmica, no sentido de que não gera burburinho, é sobre postar fotos nas redes sociais junto, é bem evidente quem não se importa com isso e quem se importa.

cheguei a fazer um comentário sobre e um conhecido mencionou que foto em rede social é besteira, relacionamento se constrói no dia a dia. não está totalmente errado, mas só acha besteira as ~ fotinhos das rede sociais ~ quem nunca vivenciou o sentimento de que a pessoa que estava com você estava te escondendo.
quantas pessoas brancas, homens e mulheres, passaram sobre a insegurança de nunca ser assumido em um relacionamento?
agora se faça essa pergunta no contexto de pessoa racializada.
a resposta é a mesma?

aliás, você consegue responder esta pergunta?

é muito cômodo minimizar gestos simples de afeto quando você vem de uma situação em que você tem isso garantido, seja você homem ou mulher, somado com ser branco.

eu me importo demais com o mínimo dos gestos, de verdade, porque nunca tive isso e quando a gente vai ficando véia amargurada, a gente percebe ainda mais o quanto isso faz muita falta
falta em vários sentidos, tanto no sentido de não ter recebido afeto, quanto compreender essas questões para evitar ciladas e não ficar achando que o máximo que você vai ter são migalhas.

eu poderia ter evitado situações nas quais a pessoa tinha vergonha de ser vista comigo, evitado situações nas quais a pessoa me deixou para depois, situações nas quais a pessoa me via como um item exótico, situações nas quais era explorada emocionalmente e situações nas quais o afeto era negado quase que de maneira explícita, mas claro, sem a pessoa nunca deixar de querer ficar comigo.

e por causa de todo esse meu histórico, eu percebo o quanto eu gosto de figuras femininas que são fracassadas em contextos afetivos. seja pelo conforto de que você nunca pode ter tudo, seja pelo conforto de que até mulheres absurdamente mais interessantes não conseguiram ter um relacionamentos, às vezes até um pouco como uma ideia de libertação de que realmente a gente nivela por baixo e acha que o afeto de um homem (branco) é relevante, quando muita vezes não é.

porém, isso é uma ideia muito simplista da coisa.
como disse, para mulheres brancas, negar afeto como uma ideia política é mais fácil, porque o afeto nunca foi negado, elas sempre serão o foco de admiração e de desejo, sendo as opções primárias para relacionamentos.

quando a gente passa para um contexto racializado, a coisa fica muito mais complexa e afirmar o afeto como um ato político, acaba sendo parte da luta pela nossa humanização.
sem entrar naquela baboseira hippie de mais amor e menos guerra, não é sobre isso.

quando a gente não recebe afeto, acabamos tendo uma tendência maior à violência, à apatia e diversos sentimentos ruins.
a gente endurece, mas não porquê somos assim, porém é apenas um meio de sobrevivência, para não se ver mais tão vulnerável.

o afeto só não é um assunto relevante para quem nunca teve isto negado e se hoje, dentro do movimento feminista, estamos olhando com mais atenção sobre este assunto é porque vozes, que realmente entendem a importância do afeto, se manifestaram. e, sinceramente, gostaria que minha versão adolescente tivesse entrado em contato com esse feminismo e não com o feminismo branco.

talvez, toda a minha admiração por mulheres incríveis que são frustradas no campo da afetividade seja um simples conforto, para ao menos não me sentir tão sozinha.

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Chegou até o final?

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Rafaela

Antropóloga e especialista em assuntos aleatórios! Uso letras minúsculas para me sentir mais livre. Newsletter: https://tinyletter.com/cafezinho_da_tarde