laços de família- o baú da avó

Rafaela
6 min readJun 26, 2023

eu sinto que os textos que mais desejo que sejam especiais, ou que dentro da minha mente possuem algum grau de importância, são os que sinto mais dificuldade de começar. e quando se trata do assunto família, aí que a coisa pega ainda mais.

eu queria enrolar, fazer uma introdução enorme sobre o papel da família de um ponto de vista antropológico, ou problematizar a família nuclear hetero, enfim, tentar criar qualquer texto para pensar como de fato vou chegar no ponto que gostaria.
e veja bem, minha ideia inicial era que isso aqui fosse apenas uma legenda de um post no feed do instagram, mas achei que a ocasião merecia algo a mais.
e cá estou, me enrolando e te enrolando.

por mais que muitos insistam em dizer que sou branca, ou por mais que muitos me olham com olhares ambíguos, me vendo em momentos como uma pessoa branca, outro, como uma pessoa amarela, na minha cabeça eu sempre fui amarela. sempre habitei o local do Outro, do diferente, isso sempre foi graças ao meu convívio com minha avó.

e isto tinha uma materialidade para além dela, existia um baú de fotos que, sempre que dava vontade, eu pedia para ver e passava a tarde ali olhando todas aquelas fotos de um tempo tão distante, mas que hoje, para mim, parece próximo.
claro que na época eu não tinha noção do que aquilo representava, culturalmente e historicamente. entendia que aquelas pessoas que não conhecia faziam parte da minha família de uma certa forma, ou eram amigos da família, que muitas daquelas pessoas saíram do Japão, atravessaram o oceano e vieram tentar ganhar dinheiro por aqui, para depois voltar. não acho que tenha ali pessoas fugidas da guerra, porque até onde sei, todos que fazem parte da família “oficial” vieram até o final dos anos 1920.

meu avô nasceu no brasil, mas minha avó nasceu no japão, não sei se eles aproximaram as famílias que vieram da mesma região do japão, a família de ambos eram de Fukuoka, foram parar na mesma fazendo de café, dentro desse contexto meus avós se conheceram.

dentre as inúmeras fotos que existem ali, duas sempre me chamaram atenção.

essa é minha bisavó, o que me fascinava era que me diziam que essa foto foi tirada no japão, na minha cabeça, essa foto, no sentido material, foi tirada no japão, mas hoje, acredito que isso foi mais no sentido temporal, uma foto da família Koga (da minha avó), que foi tirada no japão em algum momento antes de imigrarem.
e era essa foto que tinha dela, mas mexendo no baú, eis que encontro a seguinte foto:

não é a original, como pode perceber pelo brilho do papel, porém, e a foto que originou a foto da minha bisavó, contendo a família da minha avó. aquela menininha no canto direito possivelmente é ela, já que ela era a menina mais velha.

a outra foto era essa:

é o casamento dos meus avós.

a coisa que mais marcou nessa foto é que eles casaram durante a segunda guerra, momento no qual a comunidade nipônica era proibida de realizar qualquer cerimônia aqui no brasil. então, é essa a lembrança que minha avó tinha do seu casamento, uma foto, porque isso foi o que conseguiram fazer.

estas fotos foram marcantes para mim, por simbolizarem parte da família, por guardarem parte de uma história maior. mas ainda demorei até começar a ter um contato maior com a história da imigração.

e já adianto, meu contato é com a história e não tanto com a cultura japonesa. é um pouco cansativo o quanto as pessoas te jogam num 8 ou 80, ou você é muito brasileira, ou você é muito japonesa. tem muitas coisas que perpassam a minha identidade que está no meio termo, que está mais para um lado do que para outro, enfim, falando isso para não me tratarem como um totem de cultura japonesa.

enfim, depois dessa parênteses.

minha avó faleceu em 2018, desde então eu não tive contato com este baú e eu tinha uma grande ansiedade para vê-lo de novo.

fiquei pensando como seria esse reencontro, o que eu sentiria, o que pensaria.

tirei o pó externo, abri, olhei para primeira camada de coisas.

alguns documentos, dentre eles um papel sobre o serviço militar de um tio, escrituras, boletins escolares, certidões de nascimento, as certidões de óbito e título de eleitor do meu avô e da minha tia mais velha.

a próxima camada eram, enfim, as fotos.

muitos álbuns, muitas fotos soltas, algumas fotos repetidas.

olhei atentamente cada foto, cada rosto, conhecia poucos, pelo pouco que lembro de me contarem na infância quem eram.

fotos de outros tempos, com seus contextos familiares e históricos. então, fiquei com uma sensação do quanto não sei da minha própria história. em um sentido pessoal, o que tudo bem, afinal, só famílias nobres sabem dos seus antepassados, mas o quanto sei tão pouco sobre a história da imigração japonesa.

posso não saber quem são essas pessoas nas fotos, mas o que sei de como era a vida dos imigrantes japoneses, o quanto temos de relatos, ou algo que o valha além de documentos que são puramente frios, mas no final é o que resta?

como antropóloga, sei que o relato etnográfico será sempre incompleto. aquilo que temos é um recorte, um recorte de uma realidade, de um tempo, nunca vai existir uma realidade completamente retratada. e talvez por isso a antropologia, principalmente quando ela parte de pessoas marginalizadas, flerta tanto com a literatura.

a gente cria um esforço imaginativo para pensar nas possibilidades, a gente tem alguns documentos, algumas fotos, alguns relatos e nisso tentamos pensar, dentro de uma imaginação misturado com lógica, de como eram a vida dessas pessoas.

e de um momento de uma grande expectativa, eu senti um vazio. de uma certa maneira eu esperava respostas para perguntas que nunca fiz, pensar na possibilidade de reconstruir uma história, de conseguir contar algo, mas quem deveria estar contando, dando o seu relato, não está mais aqui.

e não falo só da minha avó, mas da minha bisavó, de todas as mulheres e homens presentes nos álbuns.

mas apesar de tão pouco, parece que o que fica são relatos de dores. a pobreza no japão, a pobreza num país estrangeiro, a necessidade de se fechar em colônias para sobreviver, barreira do idioma, violências racistas, barreiras culturais, enfim.

entrei nisso querendo respostas para perguntas que nunca fiz e saí fazendo perguntas e tendo questionamentos que talvez não gostaria de ter.

porém, ter essa memória material da minha família e da história de imigração japonesa ainda me gera algum conforto.

Família Hiroki

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Chegou até o final?

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Antropóloga e especialista em assuntos aleatórios! Uso letras minúsculas para me sentir mais livre. Newsletter: https://tinyletter.com/cafezinho_da_tarde