cidadezinha

Rafaela
4 min readOct 24, 2023

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sabe aquela cidade bem pequena, que todo mundo conhece todo mundo, que todo mundo vê o outro crescendo, os filhos, sobrinhos, netos e mais uma infinidade de gerações? assim era X, algumas gerações até iam embora, mas sempre voltavam porque ali era o lugar para se passar a velhice.

só tinha uma praça, ficava literalmente no centro da cidade, perto da igreja da padroeira de lá. eu até hoje não decorei o nome, pessoal aqui acha esquisito eu não ser muito afeita das religiões, nunca fui batizada, perguntaram se no fundo eu não gostava daquelas coisas de macumba, mas não, não tenho religião.

enfim, a praça era onde todo mundo se reunia no final do dia, para tomar um café com bolo, contar alguma fofoca, porque claro que todo mundo sabia da vida de todo mundo ali. mas não eram só os dos cafés que ficavam ali, tinham uns que ficavam jogando xadrez, dama, ou dominó, eu tentei enturmar ali, principalmente com o pessoal da dama e do dominó, mas parecia que eles não me queriam ali. no começo eu achava que era por ser mulher, hoje eu percebo que era por eu ter tentado cedo demais interagir ali. acho engraçado que o pessoal tem um comportamento meio de bicho, tudo que é novo eles estranham e tratam como uma ameaça.

também tinha o pessoal do bar da dri. ali tinha de tudo, dependia um pouco do horário e do dia, durante a semana tinha um pessoal mais novo que ia comer umas coisinhas depois do trabalho, confesso que fiquei chocada com a presença dos jovens de trinta anos em uma cidade que a média bate fácil os 65 anos, de sábado tinha um pessoal que ainda tinha pique para paquerar, não sei se é assim que se fala hoje em dia, mas já que não tem os bailes, vai no bar mesmo, e de domingo tinha um pessoal do bingo. eu achava incrível que ela conseguia deixar aquele lugar aberto de domingo a domingo, das 9 até o último cliente… não que ela tivesse muita coisa para fazer também, né?

era uma cidade pequenininha, depois da praça central não tinha tanta coisa, alguns mercadinhos, umas mercearias, sempre um grupo de gente fofocando na calçada, tudo era muito calmo. não à toa foi um lugar que eu escolhi morar.

sim, escolhi, lembra ali que eu disse que o pessoal me estranhou no começo? pois então, eu não sou daqui, mas vim para cá passar minha velhice. hoje, no dia em que escrevo isso, completo meus 75 anos, em uma vida completamente nova, enquanto celebro esse momento, meu passado soa como um pesadelo.

aquele pesadelo quase consciente, que você fica lutando para acordar, mas nunca acorda, um desespero.

contudo, o pesadelo acaba eventualmente, nem que a gente tenha que forçar o fim dele. foi meio isso que eu fiz. se você parar para pensar, eu era quase como uma bomba-relógio que a qualquer hora iria explodir.

digamos que minha explosão rolou lá pelos 50 anos. venho de uma cidade tristemente grande, tinha um trabalho agitado, corrido, estudava o tempo todo, tinha tudo, mas confesso que só não tive marido nem filhos, um pouco por opção, um pouco por pensar que isto poderia me prender em um lugar que eu não queria estar. estar sozinha te dá essa liberdade, você sai quando quer. mas mesmo querendo eu nunca saía, sei lá, alguma coisa me prendia naquela realidade, eu não via escapatória.

o que será que nos prendem em realidades das quais não gostamos e só nos drenam?

enfim, fiquei obcecada para sair de lá, tão obcecada que criei um plano para isso, um plano não só para sair daquela vida, eu não queria apenas deixar meu emprego, eu queria deixar de existir naquela realidade, eu queria deixar todos meus amigos para trás, os desamores, as expectativas e até a esperança.

não foi fácil, não foi simples, bolar o plano em si levou 2 anos, executá-lo levou 5, a fuga mais uns 4, mas finalmente cheguei aqui. longe de tudo e de todos e de uma vida que não me pertencia.

aqui eu existo, aqui eu me sinto em casa, mas, está ficando cada vez mais difícil esconder tudo o que aconteceu. uma mulher sem marido, sem filhos, com a tal da vida ganha, indo para um cidade no fim do mundo e sem contato com ninguém da vida antiga. bom, não à toa me estranhavam ali.

um minuto me chamaram aqui….

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Chegou até o final?

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Rafaela

Antropóloga e especialista em assuntos aleatórios! Uso letras minúsculas para me sentir mais livre. Newsletter: https://tinyletter.com/cafezinho_da_tarde